
As questões relacionadas com casos de doentes do foro neurológico, e da forma como estes são influenciados pela sua condição; como isso lhes altera a percepção das coisas, das imagens, dos sons, da estética. Lembrei-me de um livro que mudou a minha vida, de uma certa forma, e de como me fez perceber o mundo das pessoas que sofrem com estes problemas; percebê-las e entender (de uma forma assustadora, diga-se) como pode alguém ficar preso dentro do seu próprio cérebro. Foi a primeira vez que me dei conta de que estes «defeitos» na nossa mente, estas falhas técnicas, são bem físicas e muito pouco metafísicas. Aprendi a rir-me daqueles que a pessoas assim conseguem rapidamente disparar um "isso é psicológico". Pois claro que é. O livro, "O Homem Que Confundiu a Mulher Com

A própria pintura e tantos artistas que sofriam de variadíssimas doenças mentais. Como isso lhes condicionava a vida social e como influenciava o seu trabalho. Van Gogh e a sua mais do que certa esquizofrenia e a forma como o seu estado mental, permanentemente em desalinho, lhe deu uma facilidade ímpar em percepcionar uma quantidade absurda de possibilidades de utilização da côr. Dalí, que com a sua insanidade - ou apenas excentricidade? - foi capaz de criar as imagens mais estravagantes, mas também de desenvolver uma técnica minuciosa e invulgarmente perfeita.
Podia até falar de Clive Wearing, um brilhante pianista e maestro inglês que tem uma memória de apenas 30 segundos. Afectado pelo comum vírus da herpes, o cérebro de Wearing perdeu todas as capacidades de reter memórias, especialmente memórias das coisas que aprendemos todos os dias. As unicas coisas que consegue processar, única e simplesmente porque dependem de uma zona do seu cerebelo que não foi afectada, são o seu trabalho e a sua mulher. Ou seja, continua a tocar piano e a dirigir uma orquestra e lembra-se sempre da sua mulher como se fosse a primeira vez que a estivesse a ver em anos. Mesmo que a última vez que a tenha realmente visto tenha sido há uns meros 31 segundos.
Mas este trabalho tem de se relacionar com a côr de alguma forma, e por muito que a música induza esse tipo de imagens - espero eu que induza nos outros também... - o assunto não é unânime o suficiente para não provocar a discussão.

Zagar tinha 28 anos quando um esgotamento nervoso resultou na incapacidade do artista conseguir decidir um fim para os seus trabalhos. Zagar sempre afirmou ter perdido a habilidade de entender o que esteticamente seria certo ou errado. Assumindo esta sua nova forma de olhar o seu trabalho, Isaiah Zagar dedicou-se a criar murais compostos por vidro, tijolo, porcelana, plástico, metal, mas também por objectos que



Na doença - será mesmo doença? - há quem consiga encontrar coisas novas, caminhos novos para o seu trabalho. O professor de música, de que fala o doutor Sacks, que perdeu a capacidade de reconhecer rostos mas que imediatamente percebeu que recuperava essa capacidade sempre que ouvia ou tocava um peça de música clássica. Ou Jackson Pollock, que de alguma forma aprendeu a canalizar uma raiva e ódio desmedidos para as gigantescas telas que pintava. Ou Wagner, Nietzche, Cobain, Buckley, Mário de Sá Carneiro, Sarah Kane, e tantos outros, que consciente ou inconscientemente foram alimentados pela sua mente e incentivados a criar mais e mais.
Há muita coisa que me fascina em Isaiah Zagar e no seu trabalho. Tudo o que já referi - o uso das côres, a forma como transforma tanta matéria prima diferente num objecto único e totalmente claro e perceptível e que imediatamente se traduz numa imagem forte e facilmente reconhecível - mas também algo que provém de um pequeno detalhe e que me suscita um sem número de interpretações: no meio do caos organizado composto pelos pequenos pedaços de vidro, azulejo e tijolo, Zagar desenha linhas flúidas, harmoniosas, leves. O contraste entre estes traços e as arestas afiadas das pequenas peças de puzzle transmite-me a sensação de que existe algo no seu cérebro que insiste em estar ligado ao homem que era antes. Antes do incidente, antes da transformação. Na minha ideia, Zagar vive num mundo alterado pelo seu olhar, uma realidade a que não pode fugir. No entanto, existe um espaço na sua mente que se lembra de como as coisas eram antes de serem distorcidas pela morte de algumas células; lembra-se e tenta a todo o custo sobreviver na arte de um homem que decididamente não é um homem qualquer. É especial mesmo que (especialmente) por causa de um esgotamento nervoso.
Em 1972, a agência publicitária Young & Rubicam elaborou uma campanha de sensibilização para os objectivos da United Negro College Fund, uma organização apostada em lutar pelos direitos dos alunos negros nos Estados Unidos. O slogan "A Mind Is a Terrible Thing To Waste" é ainda hoje algo de extremamente familiar aos nossos ouvidos, mesmo sem sabermos o que representa ou sequer se foi inventado por alguém. É uma frase que não podia estar mais certa. Uma mente, qualquer mente, é algo terrível de desaproveitar. Isaiah Zagar lutou contra a sua dificuldade e deu-lhe a volta. Completamente. Por outro lado, a frase "The Mind Is a Terrible Thing To Taste", aproveitada pelo grupo americano Ministry para título de um dos seus álbuns, nãó é menos acertiva. A mente pode de facto ser algo de terrívelmente assustador. Os casos de que fala Oliver Sacks, ou referidos por António Damásio no seu livro "O Erro de Descartes", mostram-nos realidades que só conseguimos imaginar no cinema. Isaiah Zagar vive numa dessas (Ir)realidades. Todos os dias tem de se confrontar com a sua nova forma de olhar o mundo, de o percepcionar como mais ninguém o faz. Como ninguém o faz, realmente. O meu olhar é diferente do teu, ponto.